Violência: forças policiais ocuparam o Pinheirinho, em São José dos Campos (SP) na madrugada de 22 de janeiro de 2012 (foto | SindMetal – SJC)

 

No início de janeiro de 2012, um terreno gigantesco localizado na Zona Sul de São José dos Campos, o município mais importante da região do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, abrigava em torno de duas mil casas. Uma população formada por quase oito mil pessoas vivia ali, na área de mais de um milhão de metros quadrados ocupada em 2004 por famílias de trabalhadores sem-teto. Com a organização daquele grupo, o local se transformou em bairro, eliminando o vazio de um espaço urbano que estava abandonado desde a década de 1980.

Nunca faltaram motivos para que a ocupação, que recebeu o nome de Pinheirinho, fosse regularizada pelo poder público. O título de propriedade da gleba havia sido dado à Selecta Comércio e Indústria S.A., uma empresa que acumulou dívidas durante longos anos, sonegou impostos e teve falência decretada em 1989. Talvez porque o controlador do empreendimento fosse uma conhecida figura do setor financeiro, o especulador Naji Robert Nahas, protagonista de operações ilícitas que provocaram a quebra da bolsa de valores do Rio de Janeiro, em 2000, as coisas não aconteceram como o bom senso recomendaria.

Desde quando surgiu o Pinheirinho, Najas e seus prepostos se empenharam em recuperar a propriedade que estava registrada em seu nome. Nessa empreitada, acionaram a Justiça de São Paulo, numa sucessão de medidas judiciais arrastadas por quase uma década. Na maioria das vezes em que visitaram os fóruns e tribunais do Estado, seus pedidos foram referendados por circunspectos senhores de toga, ainda que os causídicos que movimentaram as ações tivessem cometido lapsos – pecadilhos procedimentais, insignificâncias jurídicas, como, por exemplo, a perda de prazos para a apresentação de recursos. Nada disso impediu que a massa falida da Selecta exibisse, triunfante, uma liminar de reintegração de posse que o Judiciário, merecedor da sua confiança plena, lhe concedeu, e cujos efeitos ratificou sempre que foi necessário.

Acontece, porém, que, ao contrário do que imaginam os entusiastas da aplicação fria das normas que servem aos donos do dinheiro e do arquivamento daquelas que asseguram benefícios aos desvalidos, as decisões judiciais às vezes encontram obstáculos para que se tornem efetivas. Enquanto um emaranhado de interpretações, pareceres e decretos recheava os processos do Pinheirinho, exposto no linguajar macarrônico dos operadores das leis, a ocupação crescia e se consolidava. Em pouco tempo, o Pinheirinho virou bairro. Faltava regularizar essa condição. O primeiro passo seria a cobrança da dívida milionária acumulada pela Selecta. A partir daí, uma desapropriação resolveria a controvérsia, com a entrega de títulos de propriedade a quem urbanizou, de acordo com as exigências de construção oficiais, um pedaço de terra que antes não cumpria nenhuma função social. Mas a Prefeitura de São José dos Campos não estava disposta a realizar essa tarefa.

Com os moradores do Pinheirinho organizados politicamente, a reintegração de posse ficou em suspenso por muitos anos. A ocupação ganhou a simpatia de instituições de defesa de direitos humanos, nacionais e internacionais, e passou a intervir no cotidiano da cidade, com mobilizações a favor do direito à moradia e de outras garantias constitucionais. Num dado momento, porém, a cúpula do Tribunal de Justiça de São Paulo e a 6ª Vara Cível de São José dos Campos decidiram que estava na hora de acabar com o “problema”. O Pinheirinho deveria ser destruído, e o Judiciário seria o veículo institucional para que os interesses que cercavam essa sentença de morte fossem preservados.

No início de 2011, a liminar que a massa falida havia conseguido em 2004 foi restabelecida de ofício pela Vara Cível. Estava autorizado o emprego da força policial para desalojar os ocupantes. Uma das alternativas de defesa encontradas pelos advogados do Pinheirinho foi buscar a transferência da causa para a Justiça Federal, onde talvez encontrassem um ambiente menos hostil do que o proporcionado por juízes estaduais. Debates sobre a competência para o julgamento da matéria tiveram início e se estenderam por meses. Existiram, também, movimentações que indicavam que ninguém sairia do terreno pacificamente. O despejo vinha cercado da ameaça de um banho de sangue.

Quando despontou a madrugada do dia 22 de janeiro de 2012, a situação jurídica do imóvel ainda não estava definida. Foi naquele momento que mais de dois mil soldados atacaram o Pinheirinho, humilharam seus habitantes, destruíram casas, agrediram velhos, mulheres e crianças, mataram animais de estimação e se apropriaram de objetos e da história de vida de um punhado de gente que lutava por um lote para morar. Se existia a liminar da 6ª Vara Cível, que determinava a reintegração de posse, existia também uma manifestação do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que proibia a investida militar contra a ocupação.

Em poucas horas, o Pinheirinho foi varrido do mapa. A operação que devolveu a Naji Nahas um patrimônio de origem controvertida teve a coordenação direta da Presidência do Tribunal de Justiça. Os motivos para tanto empenho, evidentemente, nunca foram declarados. O que se sabe é que o aparecimento de uma comunidade como aquela, dotada de autonomia, linha política e organização, contrariou a ordem vigente, que confunde pobreza com criminalidade e reserva o melhor da cidade à gente “de bem”, com seus dinheiros e seus sonhos individualistas.

A existência do Pinheirinho incomodou o conservadorismo do Vale do Paraíba. O desaparecimento daquela comunidade, sob o patrocínio de personalidades da cúpula do Judiciário, que embarcaram numa aventura de indisfarçável caráter político e ideológico, contemplou os desejos das elites locais. Não há novidade nisso. O que aconteceu naquele janeiro triste foi a reprodução do cotidiano enfrentado por muitos milhares de sem-teto espalhados pelo país desde tempos remotos. No começo do século XX, a expulsão de miseráveis dos centros urbanos se fazia com base em argumentos higienistas, sem disfarces. Mais recentemente, a aplicação da “lei”, via aparato da Justiça, serviu de mecanismo para atingir o mesmo resultado: “limpar” as áreas nobres das cidades e entregá-las à especulação imobiliária.

O que talvez tenha surpreendido os ordenadores da violência institucional foi a repercussão do caso. A enorme rede de apoio que se formou em torno do Pinheirinho pôs em evidência o lado podre do Estado que reprime a pobreza para conservar os ganhos de proprietários que não cumprem nenhuma função social. Esse esquema vergonhoso jogou num mesmo e constrangedor balaio membros dos Executivos estadual e municipal, polícias contaminadas pelo ódio e pela truculência, malandros de colarinho branco e, em especial, representantes do Poder Judiciário. Transcorridos dez anos do que ficou conhecido como um massacre, o terreno onde estava o Pinheirinho permanece vazio. Vazio que escancara a injustiça de um modelo social que tem a desigualdade como regra.

Mas nem tudo foram derrotas. Desde 2016, os moradores expulsos – ou boa parte deles – vivem em outro lugar, chamado Pinheirinho dos Palmaras, em unidades habitacionais financiadas pelo programa “Minha Casa, Minha Vida”. Sua luta valeu, entre outros motivos relevantes, por denunciar as contradições de um sistema de concentração da riqueza, de ataques a movimentos populares e de tentativas de matar a esperança da maioria do povo. A esperança teimosa, a esperança de sempre, que afinal sobrevive.