Nos muros da cidade grande: grafites dos anos 1970 e 1980 espalharam mensagens de amor e resistência contra a ditadura militar que governava o País (foto: cena do filme ‘Celacanto provoca Lerfá-Mu’, de 1979)

 

 

– Carolina, te amo.

A frase seca me prendeu a atenção, desenhada no tronco de uma árvore. Poucos passos adiante, topei outra vez com a declaração apaixonada, agora na base de cimento de uma lixeira. Minha trilha improvisada ainda estava longe de terminar, e o amor por Carolina se exibia aos meus olhos, insistente. Amor em tudo, em qualquer superfície possível (mesmo no chão de asfalto que meus pés pisavam sem pressa).

Fiquei a pensar no tamanho do sentimento que invocava tanto desejo, tanta ansiedade. Imediatamente, me vieram à lembrança mensagens parecidas, comuns nos anos da minha juventude, que se espalhavam pelo centro da cidade fria. Eram grafites, poesia a borrar pedaços de propriedades privadas e subverter a caretice da ordem. E me lembrei de um vídeo antigo, emprestado das redes sociais, em que o poeta Paulo Leminski palestrava para uma turma de alunos da Universidade Federal do Paraná. Acho que foi na metade dos anos 1980, quando a Nova República, um arranjo político feito de conciliação e deixa-pra-lá, marcava o encerramento da ditadura militar e dava à luz o governo de José Sarney, um notório colaborador dos milicos e seus projetos de poder.

No começo da conversa, Leminski dizia sobre um grafite que se tornou famoso em São Paulo e Rio de Janeiro, e que também apareceu nos muros da Curitiba daquela época:

– Celacanto provoca maremoto!

O amontoado de palavras aparentemente sem sentido simbolizava, segundo o bardo polaco, a angústia de uma juventude sufocada pelo autoritarismo dos anos de chumbo, a continuidade da poesia marginal setentista. O grafite (não só aquele) era, pois, um fenômeno cultural da maior importância, manifesto contra o autoritarismo e a repressão, força vinda do fundo das pessoas. “O grafite está para o texto assim como o grito está para a voz”, sintetizava. E eu aplaudia em silêncio.

Em seguida, vinha uma digressão sobre o concreto da paisagem urbana – espaço vazio destinado à palavra, muros e paredes prontos para serem violados –, sobre a criatividade e o crime, sobre a cidade encarada como prisão imposta a milhões de seres condenados a servi-la eternamente.

No final, o palestrante fez um relato que talvez explique o sentimento pela Carolina posto no desabafo que eu veria/ouviria décadas depois. Convidado por uma revista a eleger a melhor obra poética de 1982, Leminski apontou um grafite de autoria desconhecida:

– PQNA VOLTE.

Esse poema poderia ser lido pelo menos trinta vezes por quem percorresse o trajeto que vai de um ponto determinado do centro de Curitiba até a rodoviária. E outro tanto na volta. Obra genial de um grafiteiro apaixonado, verso demolidor tatuado na pele da cidade, estava ali, à disposição da humanidade, uma revelação intensa, absoluta e incontestável.

Talvez, pensei enquanto completava meu percurso, o criador da súplica a Carolina tenha encontrado inspiração naquela história de amor tão distante no tempo, da pequena engolida pelo movimento desordenado de uma rodoviária. Ou talvez ele quisesse apenas dar sequência a uma arte de rua atropelada pela modernidade dos diálogos instantâneos. Não sei. Sei que eu caminhava imerso nessas reflexões até que, quase no fim da jornada, quando era hora de voltar, a última declaração se transformou em letras surpreendentes:

– Catarina, te amo.

Levei um baque, um soco a me deixar confuso. O que significava a mudança brusca, a substituição de uma amada por outra? Seria ato falho do poeta, um sonho, um desejo adormecido? Pensei, por instante, que a frase final poderia ter sido contrabandeada por um zombeteiro qualquer, apenas para confundir. Ou que viria da mesmíssima pessoa que confessara o amor por Carolina, arrependida depois do impulso inicial. Teria sido eu a testemunha de uma desilusão amorosa e implacável? Ou estaria diante de uma provocação ao Leminski morto, algo que ele jamais poderia contestar?

As respostas que encontrei, óbvias, eliminaram todas essas hipóteses delirantes. A tinta jogada sobre a superfície de árvores, paredes improvisadas e cimento tinha uma consistência uniforme desde o começo até o fim do percurso. E o estilo da grafia confirmava: o amante desesperado (ou provocador) era um só. Não me restava mais nada, portanto, além de abandonar a desconfiança e refazer meus passos, desta vez em sentido contrário. A troca inesperada, afinal, compôs a lógica da confidência indiscreta, deu-lhe o sentido trágico imaginado pelo poeta. Nada a indagar, nenhuma explicação a ser dada. Pronto.

Ainda assim, voltei discretamente ao local do crime tempo depois. Pensava em olhar tudo de novo, retomar as impressões que a frase misteriosa me deixou. Mas não existia mais nada ali, nada a sujar a estrada, nada a perturbar a paz. Apagados os signos do amor, o mundo pareceu seguir o roteiro de sempre, sob o comando dos seus chefes, suas leis e seus compromissos relevantes.