A polarização do debate político, intensificada nos dois últimos anos, produziu rupturas definitivas e certezas absolutas, distribuídas entre os vários campos ideológicos que se digladiam em redes sociais, nos bares, nas ruas ou em encontros de famílias divididas. No centro de tudo, o brilho falso da Lava Jato e seus justiceiros midiáticos reflete um discurso moralista, de feição conservadora. Trata-se de uma visão maniqueísta da realidade, alimentada pelos meios de comunicação de massa, que descrevem policiais federais, procuradores e juízes como seres desprovidos de preferências partidárias, aptos a controlar – ou resolver –, com base apenas no pressuposto da neutralidade, a crise política que toma conta do País.

Seria ingenuidade acreditar que as coisas se passam assim. Os astros da operação que promete derrotar os males da vida pública brasileira nunca se limitaram a “aplicar a lei”, desinteressadamente. Seus movimentos, ao contrário da discrição que lhes recomendam os manuais da ciência jurídica, se orientam por um ativismo que ultrapassa a rigidez dos dogmas positivistas. São espetaculares, demagógicos às vezes, e quase sempre coerentes com o tempo político imposto pelo capital que detém o poder de fato.

As sentenças proferidas no julgamento mais polêmico dessa pauta estranha, que encarceraram um ex-presidente da República, exibindo-o como troféu a uma multidão de fogueteiros ensandecidos na Curitiba vingadora, espelham a lógica de uma condenação previsível. Para manter-se equilibrado, o “sistema” buscou fatores externos capazes de interferir no processo eleitoral. Etapa importante na consecução desse objetivo, o impeachment de Dilma Rousseff, concluído em 2016, preparou a redefinição do jogo que será jogado no segundo semestre deste ano. Sem Lula como candidato potencialmente eleito, o controle da política retornou às mãos poucas que detêm a quase totalidade da riqueza brasileira. Dispensaram-se os préstimos da liderança carismática que simbolizou, durante mais de década, um programa de conciliação de classe, com pitadas de avanços sociais e proteção à burguesia nacional. O ex-metalúrgico-sindicalista, intruso nos salões elegantes do poder, deixou de ser conveniente. Nada melhor, então, do que o xadrez frio de Curitiba para recebê-lo como hóspede.

O risco que essa equação oferece à maioria – incluídos muitos dos manifestantes que andam pelas ruas fantasiados de patriotas, em defesa dos interesses dos seus algozes – é o recrudescimento da violência legitimada pela ordem jurídica. O Estado policialesco segue cada vez mais robusto, escorado no desmantelamento do Estado social que a Constituição de 1988 imaginou construir. Acima de qualquer outra força, são homens de toga que respaldam essa inclinação autoritária. Para tornar possível a condenação de Lula, eles protagonizaram manobras heterodoxas, suprimiram garantias processuais e relativizaram o princípio da presunção de inocência do réu, mediante a “colheita” e o aproveitamento de provas não necessariamente encadeadas entre si. Está tudo lá, nos arquivos da Lava Jato, transformado em espetáculo de combate à impunidade, num enredo de traços inquisitoriais.[1]

A Justiça, em suas várias expressões e instâncias, assumiu o papel de porta-voz do “povo” – ou de intérprete da “vontade das ruas”. Numa apropriação enviesada de conceitos que parecem extraídos do direito alternativo e de outras correntes do pensamento crítico[2], flexibilizou a interpretação das leis e da norma constitucional a pretexto de dar agilidade à execução da pena. Mas não o fez sob uma perspectiva transformadora, de consolidação de direitos coletivos, e sim com base nas preferências individuais dos agentes encarregados das investigações. Não é por acaso que a Lava Jato, na linha do “prendo e arrebento”, ganhou apoio de movimentos ultraconservadores, que acolheu como aliados.

Embaladas por doses consideráveis de vaidade, essas opções produziram bizarrices. A mais recente delas se deu nos momentos que antecederam a prisão de Lula, no dia 7 de abril, e culminou com cenas de um empresário de São Paulo distribuindo milhares de latas de cerveja em frente ao seu estabelecimento – um assim chamado “complexo hedonista”. Durante a comemoração, painéis gigantescos com as imagens de Sérgio Moro, o juiz popstar, e Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, adornaram o portal de entrada do prédio, num sinal de gratidão do seu distinto público pelos serviços relevantes prestados.[3]

Na outra ponta da disputa política, a chegada do ex-presidente ao cárcere curitibano delimitou a preferência do Estado e suas milícias. Enquanto apoiadores da Lava Jato se divertiam com palavras de ordem recheadas de ódio e preconceito, o lado contrário recebia um tratamento estúpido de agentes da Polícia Federal, que lhe ofereceu espancamentos, gases de efeito moral e balas de borracha.[4] Afinal, na república de Curitiba, onde “se cumpre a lei”, é proibido discordar – eis o que reza a democracia capitaneada pelo Poder Judiciário e seus heróis.

Tristes dias, os de agora.

 

 


[1] Verificar, a respeito, o artigo Assim decretou Sérgio Moro: breves apontamentos sobre política e Justiça, publicado na página da Assejur na internet.
[2] Segundo o desembargador Amilton Bueno de Carvalho, um dos principais teóricos do direito alternativo, o predomínio de uma formação acadêmica conservadora no Brasil não bastou para impedir a emergência dos chamados ‘juristas orgânicos’, cuja função principal consiste em ‘desmistificar a ordem posta, lutar pela mudança da sociedade, buscar o justo no caso concreto, contextualizando o jurídico com a realidade sócio-político-econômica’ (ANDRADE, Lédio Rosa de. Introdução ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996). Para Antonio Carlos Wolkmer (Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo: Saraiva, 2006), as teorias críticas são formulações que buscam a erosão dos mitos e das falácias reproduzidos pela ciência jurídica tradicional, com o reordenamento do direito ‘no conjunto das práticas sociais que o determinam’. Evidentemente, esse tipo de raciocínio é estranho à atuação dos membros mais destacados da Lava Jato.
[3] Verificar, a respeito, matéria publicada no portal TV Uol em 7/4/18 com o título Dono do Bahamas distribui 9 mil cervejas para festejar prisão de Lula.
[4] As cenas e as consequências da violência foram testemunhadas pelo autor deste artigo, e podem ser conferidas em vídeo produzido pelo jornal Brasil de Fato.