Campanha: comercial da Volkswagen utilizou imagem de Elis Regina cantando ao lado da filha Maria Rita (foto | reprodução)

 

Fui apresentado, durante a semana, ao comercial em que aparecem, juntas, a cantora/compositora Maria Rita e uma imagem de Elis Regina. No filme, a mãe pilota uma Kombi antiga, branca e azul, e a filha pilota outra, muito moderna. Por alguns motivos que me são caros, fiquei emocionado com a peça publicitária. Primeiro, porque o tema invocado era a Kombi, uma paixão que adquiri na maturidade, símbolo de espaço coletivo, da perspectiva de novas descobertas e de outras banalidades afins. Depois, pela Elis, personagem que desperta lembranças de um tempo brabo e contraditoriamente esperançoso. Finalmente, pela música de Belchior (e pela cara do Belchior estampada nas camisetas de atores que participavam do anúncio).

Até aí, tudo bem. A produção, apesar das suas intenções explicitamente comerciais, havia tocado o meu coração de velho. Impressionei-me com a pessoa que estaria a representar a Pimentinha, de traços quase iguais aos dela, até descobrir, estarrecido, que o que se exibia aos meus olhos de lágrimas não era ninguém. Ou não era nada. Aquilo se resumia a uma imagem vinda não se sabe de que lugar, fruto do que foi batizado pela contemporaneidade de “inteligência artificial”. A partir disso, alcancei a profundidade da polêmica que se estabeleceu: o belo transformado em gelo e pavor. Odiei os tais recursos mórbidos e interesseiros.

Não foi a primeira tentativa de trazer a Elis de volta em grande estilo. No final de 2006, um especial televisivo anunciou, pomposamente, que reconstruiria a trajetória da artista. O desastre que veio na sequência me provocou reflexões. Tenho lembrança da parte do documentário que remete aos anos de chumbo. Anotei: “Havia, na realidade de então, uma angústia que se espalhava por tudo, misturada com a frieza do vento que tocava meu rosto de menino (na minha memória, quase todos aqueles dias eram frios). Pois eu era menino, vejam só, e a voz da Elis me dizia que algo não andava bem por aqui. O choro recorrente da artista era o sinal de alerta. Falava por si”.

A televisão, porém, contava outra história. “A autenticidade dos fatos cedeu à pasteurização global. A reconstituição de uma época nebulosa se fez colorida, festiva, ingênua”. O clima tenso das cenas originais, observava eu, havia sido anulado pelo excesso de produção. Nessas cenas, a beleza era a própria Elis, “a beleza que brotava da alma, do chão sujo de sangue, dos olhos cheios de dor”. Não custava respeitar isso.

Como aconteceu antes, recuso-me agora – e definitivamente – a consumir a Elis-produto, a Elis dos mentirosos, dos exploradores, dos oportunistas, da ilusão tecnológica. Como antes, também, quero a emoção de volta, sem truques – “a dor, o medo e sobretudo a esperança que nos animava para a luta”. Que não nos roubem o que é.