Acabo de ler, com grande prazer e proveito, “Ilhas, Veredas e Buritis: a autobiografia de Eliane Lage e a história do cinema da Vera Cruz” (Gryphus Editora). Uma leitura tardia, já que a edição de 2023 é a reedição de uma anterior, que eu não conheci.

Eliane Lage, para quem não sabe ou não se lembra, foi uma das mais bonitas atrizes do cinema nacional, uma mistura de camponesa e aristocrata, que inaugurou a companhia cinematográfica Vera Cruz, sonho de um grupo de cineastas internacionais e industriais paulistas de criar um estúdio hollywoodiano em São Bernardo do Campo, São Paulo. Ex-socialite, de tradicional e abastada família carioca, nascida em Paris, filha de pai brasileiro e mãe francesa, alta, elegante, cheia de charme e personalidade forte, Eliane virou atriz por acaso. Ou por amor, pois apaixonara-se pelo diretor anglo-argentino Tom Payne, e atuar era a melhor maneira de ficar perto dele. Teve uma carreira curta, mas de filmes marcantes na arrancada inicial da Vera Cruz: “Caiçara” (1950), “Ângela” (1951), “Terra é sempre terra” (1952), “Sinhá moça” (1953) e “Ravina” (1959).

A caminhada de Eliane Lage foi de constante renovação. Deixou o cinema, mas teve a sua vida toda marcada por ideais, lutas, glórias e derrotas, que jamais a desestimularam. Como diz Ignácio de Loyola Brandão, no prólogo, Eliane “sempre esteve na dela, em busca do seu próprio eu, de uma viagem interior”. Casou-se com Payne, teve três filhos e uma trajetória de mãe, dona de antiquário, professora, guia de turismo, fazendeira, criadora de cabras, de galinhas, de perus e de vacas, mas foi encontrar-se verdadeiramente no interior de Goiás, na bucólica Pirenópolis, uma cidade onde todo mundo se conhece e se cumprimenta e onde Eliane vive feliz aos 95 anos de idade.

E por que Pirenópolis, a duas horas de Brasília, considerada o umbigo do mundo e o centro do Brasil? Eliane garante que o culto do sol, da água e da montanha e a serra dos Pirineus são características únicas do lugar. E argumenta: “Não conheço nenhuma cidade do interior que, tendo as mesmas tradições culturais enraizadas no século 18, os mesmos preconceitos religiosos e machistas, tenha produzido uma comunidade com a cabeça tão sadia, que encare a vida com tamanho senso de humor e alegria”.

Acrescenta que o segredo talvez sejam as veredas sombreadas de buritis, a serra com seus cristais atraindo energias ocultas, o centro histórico, hoje Patrimônio Nacional, com suas construções de perfeitas proporções, linhas sóbrias e belas cores. Ou então o rio das Almas com suas cachoeiras. Aliás, reza a lenda que, quem bebe de suas águas, fica enfeitiçado e não vai mais embora. Está explicado.

O livro é bem escrito, por quem tem intimidade com a literatura e o que contar. Quando se acaba a leitura, “com atmosfera de romance” – como também assinala Ignácio de Loyola –, “nos vemos diante de uma mulher que foi avançada e moderna em sua época”, […] “que sempre olhou para seu tempo com uma visão crítica, aguda, muitas vezes distanciada, percebendo valores que não eram reais, entendendo a mistificação, a representação, o supérfluo, a vaidade”.

Como a Loyola, a leitura do livro de Eliane Lage “me fez bem, me fez ver de que maneira nos apegamos a coisas que não têm sentido, não fazem parte de nós, nos dilaceram e, mesmo assim, nos curvamos a elas”. E, acima de tudo, “é uma narrativa que se lê com prazer e emoção, porque mostra a construção interna de uma mulher em um mundo em transformação veloz”.

Quando meu filho foi buscar o livro, encomendado às Livrarias Curitiba, o gerente da loja, ao entregá-lo, disse-lhe: “Se eu soubesse que este livro existia, não o teria vendido. Queria lê-lo antes”.

Se o leitor destas linhas tiver o mesmo desejo, não perca tempo. Ainda deverá ter algum exemplar no estoque das boas casas do ramo.

 

Célio Heitor Guimarães é escritor, jornalista e consultor jurídico aposentado.