Nos primeiros dias depois da publicação da Lei nº 13.964/2019, ainda em vacatio legis, faremos uma análise tópica e como vislumbre inicial das importantes alterações trazidas por ela. Em momento posterior, faremos um estudo mais sistemático e aprofundado.

É relevante, todavia, esse primeiro olhar, tendo em conta a perplexidade demonstrada por boa parte da comunidade jurídica, e mesmo da sociedade em geral, com alguns dispositivos da nova lei. Muitas das alterações legais aperfeiçoaram nosso sistema processual acusatório público, buscando afastar o juiz da atividade persecutória estatal, tudo em prol de sua imparcialidade, trabalhando com temas que já havíamos examinado anteriormente. Portanto, muito do que se vai dizer já consta em escritos anteriores, nossos e de outros autores. Buscamos, no entanto, atualizar algumas ideias diante do que restou positivado. Vamos a algumas delas.

Tendo em vista que adotamos o sistema processual penal chamado de “acusatório”, que busca bem definir a atuação dos sujeitos processuais essenciais (juiz, autor e réu), com escopo de criar condições objetivas para a imparcialidade dos órgãos jurisdicionais, não pode restar a menor dúvida de que será muito salutar a introdução da figura do “juiz de garantias” em nosso sistema de justiça criminal.

A ideia é que haja um juiz para atuar predominantemente na fase investigatória e outro para atuar na fase processual. Dissemos “predominantemente” porque a nova lei delimitou a competência do juiz de garantias até o recebimento da denúncia, quando já existe, a rigor, processo de conhecimento em curso. Tanto que, caso o juiz de garantias rejeite a denúncia, estará extinguindo um processo, com ou sem resolução do mérito, a depender da motivação posta.

Se bem percebermos, a fixação da competência processual, através da chamada “prevenção”, é altamente prejudicial ao princípio básico que deve nortear o desejado processo penal democrático, qual seja, a imparcialidade dos juízes e dos demais julgadores de outros graus de jurisdição. Sabemos que a prevenção, definida no artigo 83 do Código de Processo Penal, não é um critério de modificação da competência, mas sim de fixação da competência entre órgãos jurisdicionais já potencialmente competentes.

No sistema processual acusatório, a atividade jurisdicional depende da acusação da parte, pois o juiz não é órgão persecutório, o juiz não deve se imiscuir na investigação policial, tudo para não comprometer a sua necessária imparcialidade. Por esse mesmo motivo, parte da melhor doutrina pátria tem entendido que as regras do atual Código de Processo Penal, que outorgam aos juízes poderes persecutórios na fase inquisitória, na fase de investigação, não teriam sido recepcionadas pela Constituição da República de 1988. Seriam funções anômalas, na feliz expressão do renomado autor Fernando da Costa Tourinho Filho.

Por outro lado, se for imperiosa a atividade do magistrado antes da instauração do processo de conhecimento condenatório para decidir sobre medidas cautelares no curso da investigação, o certo é que este juiz não presida o futuro processo, pois já pode ter formado a sua convicção prematuramente, sem que tenha avaliado provas produzidas sob o crivo do contraditório, provas que serão produzidas pela defesa em um futuro processo. Para tornar juridicamente possível essa proposta teórica, criou-se a figura do chamado “juiz de garantias”, positivado pela Lei nº 13.964/2019. Esse “juiz de garantias”, quando provocado pela autoridade policial, pelo Ministério Público, pelo ofendido ou pelo indiciado, prestará a relevante tutela jurisdicional de urgência ou cautelar, decretando prisões, concedendo liberdades provisórias, anulando prisões ilegais, decidindo sobre interceptações telefônicas, buscas e apreensões domiciliares, etc.

Importante ressaltar que o juiz de garantias não vai ser um “juiz de instrução”, não vai ser um órgão persecutório, não vai investigar os delitos. Isso compete à polícia com o controle externo do Ministério Público. Na verdade, o juiz de garantias terá apenas a competência para deferir ou não as medidas cautelares postuladas pela polícia, pelo Ministério Público ou pelo indiciado, sem entrar no mérito ou valorar as provas carreadas para os autos. Trata-se de delimitação da chamada competência funcional, conforme lições dos clássicos José Frederico Marques e Tourinho Filho.

Como o juiz de garantias pode acabar influenciado pelo resultado das medidas cautelares que deferiu, quase todas inquisitórias, ou seja, não submetidas ao contraditório prévio, pode ter ele comprometida a sua imparcialidade ou isenção, até mesmo pelo contato direto com a polícia, o Ministério Público e os peritos. Assim, não deve atuar na instrução e julgamento, caso o Ministério Público ofereça a sua denúncia, peça inicial do processo penal. A denúncia do Ministério Público, apresentada com base na prova colhida no inquérito policial, será distribuída, por sorteio, a um novo órgão jurisdicional que, com maior isenção, vai formar a sua convicção com a prova que for produzida pelas partes no processo penal, regido pelas garantias constitucionais. Assim, o juiz do processo de conhecimento condenatório, que permaneceu “distante” da investigação policial, tem melhores condições para julgar o mérito da pretensão punitiva. Sua convicção será formada na medida em que a prova seja produzida no processo, submetida ao contraditório participativo, entre as partes processuais.

É muito importante que o juiz de garantias tenha, ele próprio, as mais relevantes garantias inerentes ao exercício da jurisdição, que são a inamovibilidade e independência funcional. O novo artigo 3º-E do CPP menciona que o juiz será “designado”, embora com critérios objetivos. Como se trata de órgão do Poder Judiciário, criado por lei, somente é admissível seu provimento sendo observados os critérios de remoção e promoção por antiguidade e merecimento, conforme comando constitucional (artigo 93, II, da CF). Sendo respeitada essa forma de provimento, não há nenhuma inconstitucionalidade na adoção do juiz de garantias em nosso sistema. Pelo pelo contrário, trata-se de consequência lógica da estrutura acusatória do processo. O princípio do juiz natural estará preservado, pois o juiz de garantias será previamente competente para conhecer das cautelares propostas, sem  escolhas arbitrárias das partes ou do Poder Judiciário.  A própria lei trouxe solução prática nos casos de comarcas com apenas um juiz, sendo possível que o sistema de rodízio siga as tabelas de substituição automática de juízes, postas em atos normativos dos respectivos tribunais. A rápida implantação do Processo Judicial Eletrônico (PJe) facilitará ainda mais o trabalho dos juízes em substituição.

Entre as competências do juiz de garantias, algumas merecem destaque. A começar pelo inciso IX do artigo 3º-B do CPP, que adotou terminologia não técnica, oriunda da rotineira atividade judiciária, considerando que o juiz pode determinar o “trancamento” do inquérito policial. Sempre nos insurgimos contra o confuso uso das expressões “trancamento de inquérito” e “trancamento de processo”. Não se trata de mero preciosismo. Cuida-se de usarmos os termos processuais adequados a fim de que se saiba com clareza o que realmente foi decidido e que efeitos tal decisão produz. Uma decisão judicial que “tranca” um inquérito produz o mesmo efeito de uma decisão de arquivamento desse inquérito policial ou das peças de informação, e deve ser assim analisada, em todas as suas consequências. Surgindo notícia de prova nova, as investigações policiais devem ser retomadas. Surgindo a prova nova, o direito de ação deve ser exercido pelo Ministério Público (princípio da obrigatoriedade da ação penal condenatória pública).

A decisão de “trancamento”, verdadeiro arquivamento, jamais pode fazer coisa julgada material, pois não há ação, jurisdição ou processo. Trata-se de uma decisão judicial e não jurisdicional, prolatada em um procedimento administrativo de natureza inquisitória, presidido por um delegado de polícia. Na verdade, ao decidir pelo arquivamento do inquérito policial (procedimento administrativo inquisitorial), o juiz não deve aplicar o direito material ao caso concreto, dizendo, por exemplo, que o indiciado agiu em legítima defesa ou justificado por alguma outra excludente de ilicitude ou culpabilidade. Deve dizer, sim, que não há prova mínima da ilicitude ou reprovabilidade da conduta investigada. Também sobre isso já escrevemos.

Entretanto, uma decisão de mérito, provocada por uma ação de habeas corpus, transitada em julgado, pode impedir a instauração de novo inquérito ou mesmo impedir o prosseguimento das investigações em andamento. Isso se dá quando o órgão jurisdicional decidir sobre o “direito de punir” do Estado. Por exemplo: via ação de habeas corpus, o juiz ou o tribunal podem declarar extinto o ius puniendi estatal, tendo em vista o reconhecimento da prescrição. Nesse caso, não caberá mais a persecução penal como efeito dessa decisão jurisdicional. Aqui, houve ação (habeas corpus), jurisdição e processo.

Tudo isso vale, mutatis mutandis, para a decisão de “trancamento do processo ou da ação” (sic). Os efeitos dessa decisão serão: a) extinção do processo sem resolução do mérito, por falta de uma condição da ação); b) anulação do processo ou de alguns de seus atos; e c) declaração de inexistir ou ter desaparecido o “direito de punir” do Estado, hipótese muito excepcional. Como se trata de verdadeiro arquivamento do inquérito, o juiz de garantias não poderá fazê-lo ex officio, mas apenas por provocação do investigado ou do Ministério Público, que deve sempre ser ouvido previamente. O juiz de garantias é perfeitamente aplicável aos processos penais condenatórios originários dos tribunais, devendo o relator designado para conhecer das medidas cautelares preparatórias restar impedido de funcionar na fase de instrução e julgamento.

Parece-nos certo que houve uma revogação tácita parcial do artigo 18 do CPP, na parte em que define o arquivamento do inquérito ou peças de informação como decisão judicial, eis que a nova redação artigo 28 do CPP determina que os autos serão arquivados no âmbito do Ministério Público, cabendo, inclusive, uma revisão desse arquivamento pelo órgão ministerial superior. Tal tipo de arquivamento pelo próprio Ministério Público é mais consentâneo com o sistema acusatório, sendo necessária uma melhor estrutura do órgão, sob pena de ocorrer um aumento do oferecimento de denúncias sem a devida base indiciária mínima ou mesmo requerimentos de novas diligências policiais prescindíveis ao exercício da ação.

O novo artigo 28-A do CPP traz inovação legal denominada “acordo de não persecução penal”. De início, podemos dizer que a denominação escolhida está condizente com o precário nível técnico apresentado em muitas partes de todo o projeto. Como é de conhecimento de todos, a persecução penal é atividade estatal que busca elucidar a existência e a autoria de uma infração penal, dividindo-se em duas fases: uma administrativa, feita pela polícia investigativa, e outra processual, desenvolvida perante o Poder Judiciário, num processo acusatório. Dessa forma, a persecução penal, quando da realização do acordo previsto no novo artigo 28-A, já se iniciou (a primeira fase até findou), eis que o Ministério Público só fará tratativas com seu parceiro no negócio, o eventual criminoso, após receber os autos do inquérito policial ou peças de informações.

Daí decorre com clareza que o acordo não se pode denominar como de “não persecução penal”, pois já iniciada. Inclusive, caso efetivado o acordo, a persecução penal será ultimada com êxito, aplicando-se uma sanção penal. Sem dúvida, a Lei nº 13.964/2019 melhorou bastante o que foi pensado inicialmente pelos integrantes do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que editou a Resolução nº 181/2017, reformada pela de nº 183/2018.

Essas resoluções são absolutamente inconstitucionais, seja formalmente (direito processual deve ser regido apenas por lei em sentido estrito, nos termos do artigo 22, I, da CF), seja materialmente, ao admitirem aplicação de sanção penal sem contraditório, defesa, processo ou sentença, ou seja, sem o mínimo civilizatório já positivado, apostando na selvageria punitivista e violando claramente o artigo 5º, LXIV e LXVII, da CF, entre muitos outros que poderiam ser mencionados.

Nesse sentido, a Lei nº 13.964/2019, em comparação com as resoluções ministeriais, notadamente com a redação original da Resolução nº 181/2017-CNMP, representa um avanço, seja porque resolve a questão da inconstitucionalidade formal, passando o instituto a ter sede legal, seja por exigir sentença judicial na homologação do acordo, prevendo que seja executado numa vara judicial de execução penal (artigo 28-A, § 6º).

Embora existam esses pontos positivos, há um obstáculo que nos parece intransponível para que se considere tal acordo adequado à Constituição Federal. Se bem percebermos, a redação do artigo 28-A, com seus incisos e parágrafos, deixou o acordo penal anterior à denúncia com praticamente todos os elementos que já existem no artigo 76 da Lei nº 9.099/1995. De fato, trata-se mais do que semelhança, tendo existido verdadeira transposição de expressões e frases inteiras da Lei nº 9.099/1995 para o CPP.

O que se tem no novo artigo 28-A do CPP, na realidade, é a ampliação do uso do instituto da transação penal, que é semelhante ao acordo penal anterior à denúncia em praticamente tudo, sendo certo que a Constituição Federal não permitiu tal modalidade de julgamento sumário para além da competência dos Juizados Especiais Criminais, conforme podemos perceber no artigo 98, I, da CF, conforme já alerta há algum tempo o professor José Carlos Porciúncula. Noutras palavras, por via indireta, escamoteada, o artigo 28-A realizou, na verdade, uma ampliação da transação penal, para que seja utilizada por juízos criminais com competência diversa do que a Constituição Federal permite.

O artigo 98, I, da CF, não deixa espaço para tergiversação: somente nos Juizados Especiais Criminais é permitida a transação penal. O acordo penal anterior à denúncia, embora com outro nome, trata, na verdade, da ampliação da transação penal para além da competência dos Juizados Especiais Criminais, algo não permitido constitucionalmente. Para ficarmos em apenas alguns exemplos, quanto à identidade entre a transação penal e o acordo penal anterior denúncia, pinçaremos alguns pontos.

Tanto o artigo 76, da Lei nº 9.099/1995 quanto o artigo 28-A do CPP afirmam que o Ministério Público poderá, não sendo o caso de arquivamento do inquérito policial ou peças de informação, propor aplicação imediata de penas restritivas de direitos, desde que haja concordância do investigado. Da mesma forma que na transação penal, não caberá acordo penal anterior à denúncia quando o investigado tiver sido “beneficiado” com o mesmo instituto ou outros, dos chamados “despenalizadores”, nos cinco anos anteriores, além de não gerar efeitos de reincidência.

Outra semelhança: caso haja descumprimento do acordo, este deve ser rescindido e o Ministério Público deverá – e não “poderá” – oferecer a denúncia, se presentes todas as condições para exercício da ação penal condenatória. É o que diz o artigo 28-A, em seu § 10: “Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia”. Nesse ponto, importante esclarecer que, da mesma forma que na transação penal, não há propriamente uma exceção ao chamado princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal condenatória, positivado em nosso sistema jurídico nos artigos 24 do Código de Processo Penal, 30 do Código de Processo Penal Militar e 342 e 357 do Código Eleitoral.

Não se abre ao Ministério Público, diante de inquérito policial ou peças de informação, a possibilidade de requerer o arquivamento por motivos de política criminal, conveniência ou oportunidade. O Ministério Público ou oferta denúncia ou propõe o acordo. Não pode, pois, deixar de viabilizar a pretensão punitiva estatal. Note-se que, caso o Ministério Público entenda que não há prova da existência de um crime, indícios de autoria, que há prescrição, enfim, que não estão presentes quaisquer das condições para exercer a ação penal condenatória, deve requerer o arquivamento do inquérito. Apenas quando não é o caso de arquivamento, diz a lei, deve o Ministério Público propor o acordo ou ofertar a denúncia.

Noutras palavras, para que o Ministério Público possa propor o acordo, faz-se necessário que o lastro probatório mínimo indique a existência de uma conduta típica, ilícita e culpável, indícios de autoria e que tenha legitimidade para tal, além de atribuição. Portanto, o Ministério Público, ao propor o acordo penal anterior à denúncia, faz uma verdadeira acusação, pretendendo a aplicação de uma pena restritiva de direitos. São esses os elementos componentes de uma acusação: narrativa de um fato criminoso, atribuição desse fato a alguém, classificação jurídica do fato e pedido de condenação.

Parece-nos certo que a mudança no artigo 311 do CPP, retirando a possibilidade de o juiz decretar a prisão preventiva de ofício, mesmo na fase processual, e a alteração na redação do § 2º do artigo 282, proibindo o juiz de decretar outras medidas cautelares de ofício, também no curso do processo, não deixa mais qualquer dúvida de que na fase inquisitorial isso também é proibido. Não haveria nenhum sentido em proibir a atuação judicial, de ofício, na fase processual, quando já há denúncia ofertada, com estabilização da opinio delicti, provocação da atividade jurisdicional, e permitir tal proceder ainda na fase de inquérito.

Para que o juiz venha a decretar uma prisão preventiva, ainda em sede de investigação, deve cogitar qual crime teria sido cometido, a fim de verificar a admissibilidade da prisão preventiva (artigo 313 do CPP). Formula o juiz, portanto, em momento absolutamente impróprio, uma verdadeira opinio delicti. Também deve o juiz verificar a existência de prova da materialidade delitiva e indícios de sua autoria (artigo 311 do CPP), cogitando até mesmo dos requisitos necessários para o oferecimento da denúncia, quando sequer foi exercida a ação penal. O juiz ainda precisaria verificar um dos fundamentos previstos no artigo 312 do CPP.

Um ponto merece atenção. Entre as opções postas ao juiz no artigo 310 do CPP, já desde a Lei nº 12.403/2011 e mantida pela Lei nº 13.964/2019, está a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. Alguns autores e boa parte da jurisprudência passaram a defender que o termo “converter”, usado no inciso II do artigo 310 do CPP, mantido pela Lei nº 13.964/2019, permitiria a imposição de prisão preventiva de ofício, na fase inquisitorial. Pensamos impertinente tal interpretação. Ora, não se deve definir os atos jurídicos tendo em conta apenas a terminologia que a lei emprega, até por conta da notória atecnia legislativa em matéria processual. Se o juiz tem que considerar os pressupostos, os fundamentos e as condições de admissibilidade da prisão preventiva (artigos 311, 312 e 313 do CPP) para realizar a tal conversão, trata-se de decretar a própria preventiva. Não importa que a lei empregue termos diversos. Poderia utilizar outros, tais como, imporá, aplicará, infligirá, determinará, etc., e estaria, do mesmo modo, estabelecendo comando para incidência da prisão preventiva com todos os seus caracteres, pressupostos e fundamentos básicos. Com o quadro legal que temos no momento, a melhor interpretação é no sentido de que o juiz somente pode decretar prisão preventiva e qualquer outra medida cautelar mediante requerimento das partes e por representação da autoridade policial – neste último caso, devendo ouvir previamente o Ministério Público.

Uma disposição de difícil aplicação em alguns casos, embora seja salutar sua previsão, é o contraditório prévio, de viés participativo, posto no § 3º do artigo 282 do CPP, no sentido de que o juiz deve intimar a parte contrária, quando receber o requerimento de qualquer medida cautelar, para que se manifeste no prazo de 5 dias. O artigo 282 se insere nas disposições gerais do título XI, Livro I, do CPP  (“Da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória”), e, portanto, aplica-se no caso de prisão preventiva. A dificuldade para aplicação de tal dispositivo poderá ocorrer em diversas hipóteses. Basta se pensar, por exemplo, na prisão preventiva requerida para evitar a fuga do investigado/réu ou inibir destruição de provas ou ameaças a testemunhas e vítimas. Há espaço de incidência para tal regra, evidentemente, devendo ser aplicada sempre que for possível.

Os novos regramentos da colaboração premiada vêm corroborar crítica que fizemos desde o início do seu mau uso, especialmente por membros do Ministério Público, polícia e Judiciário envolvidos com a chamada “Operação Lava Jato”, pródiga em propor e homologar cláusulas absurdas e totalmente contrárias às disposições expressas da Lei nº 12.850/2013. Para ficarmos em dois exemplos, dentre inúmeros possíveis, de flagrante ilegalidade nesses acordos, citem-se dois casos: Paulo Roberto Costa, condenado a 128 anos de prisão, tendo cumprido 5 meses recolhido em estabelecimento penal e, logo após, foi liberado para “regime aberto domiciliar”, sem tornozeleira eletrônica, em condomínio de luxo de sua propriedade, e Alberto Youssef, condenado a 121 anos de prisão, dos quais cumpriu 2 anos e 8 meses em estabelecimento penal, logo após foi liberado para cumprir 4 meses em “regime fechado domiciliar”, em seguida passando ao aberto. Como se vê, uma afronta completa ao disposto no artigo 4º da Lei nº 12.850/2013, tudo homologado pelo Poder Judiciário e proposto pelo Ministério Público, instituições que deveriam zelar pelo estrito cumprimento da lei.

Queremos crer que não haverá mais espaço para esse ativismo inconsequente, tendo em conta a nova disposição do inciso II, § 7º,  do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013, que limita expressamente a possibilidade de homologação do acordo de colaboração premiada à “adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º deste artigo”, além de se referir enfaticamente à impossibilidade de criação de regimes de cumprimentos de penas diversos dos previstos legalmente. Esperamos que a criatividade dos parceiros do contrato de colaboração premiada (Ministério Público, polícia e agentes criminosos) não se sobreponha, mais uma vez, ao que está expressamente previsto em lei. Caso isso ocorra novamente, cabe ao Poder Judiciário, como dever, recusar a homologação do acordo e remetê-lo às partes para as adequações necessárias (§ 8º do art. 4º da Lei nº 12.850/2013).

O § 16 do artigo 4 da Lei nº 12.0850/2013 agora traz regra de reforço que se aplica, inclusive, ao recebimento da denúncia e decretação de medidas cautelares. A delação premiada deve ser corroborada por outras provas para decretação de quaisquer medidas cautelares, recebimento de denúncia e, com mais razão, para sentença condenatória. É importante alteração que visa a limitar o indevido uso de delações, sem nenhuma base probatória, para fins de perseguições alheias ao interesse público, prática que se tornou comum e que motivou tal modificação legislativa.

De modo geral, as alterações processuais trazidas pela Lei nº 13.964/2019 foram surpreendentemente positivas. A surpresa se dá pelo discurso simplista e punitivista que graça no meio político-jurídico atual, de forma que a aprovação de tal lei nos dá um certo alento de que nem tudo está perdido em nosso sistema jurídico. Muitos pontos podem e devem ser criticados na citada lei, especialmente quando examinamos seus aspectos penais e de execução penal. Mesmo na seara processual, antes da execução penal, há pontos passíveis de crítica, tais como a nova regra do § 5º do artigo 157 do CPP, que pode ensejar o uso de provas inadmissíveis apenas com o intuito de afastar o juiz, que assim as declarar, do processo.  Melhor solução deu a lei anterior, de nº 11.690/2008, que se limitou a determinar o desentranhamento da prova declarada inadmissível.

Outro ponto que merece crítica, e que é de duvidosa constitucionalidade, é a regra posta no artigo 492, I, “e”, do CPP, que agora permite uma execução provisória da pena de prisão com base no fato de a pena ter sido aplicada em patamar igual ou superior a 15 anos. Ora, a questão que se coloca, em relação à (in)constitucionalidade da chamada execução provisória da pena de prisão, é a violação ou não ao princípio da não culpabilidade, pouco importando se a condenação aplicou pena de 10, 15 ou 30 anos.

Todavia, pelo objetivo desse texto, de passar apenas algumas primeiras impressões sobre as principais alterações postas pela Lei nº 13.964/2013, deixamos tais análises para outro momento e outro espaço, quando revisitaremos tais questões com mais vagar.

 


Afrânio Silva Jardim é mestre (UGF) e Livre-docente (UERJ) em direito processual penal e procurador de Justiça aposentado do MPRJ.

Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim é professor de direito processual penal (ASCES e Escola Judicial TJPE) e juiz de eireito (TJPE).