O estudo a seguir procura sintetizar dois textos que abordam, sob ponto de vista distintos, a questão do Estado e do direito: “La crisis de la democracia y la lección de los clásicos”, de Norberto Bobbio, e “Crítica das concepções jurídicas do Estado”, de Michel Miaille.

 

Jackson Pollock – mural (detalhe)

 

Primeiro texto

 

Para Norberto Bobbio, a compreensão da crise das democracias contemporâneas demanda uma análise preliminar dos trabalhos desenvolvidos por doutrinadores clássicos em torno das noções de Estado e de direito. Examinando a evolução das formas estatais até o advento das sociedades democráticas, onde o uso da força monopolizada pelo Estado é reduzido, Bobbio identifica problemas que põem em crise a própria manutenção da democracia, que se vê ameaçada por paradoxos de difícil superação. Nas linhas seguintes, é exposto um resumo do ensaio.

1. Segundo a lição dos clássicos, que costuma iniciar em Maquiavel (unicamente porque o pensamento de Maquiavel acompanha a formação do Estado moderno), mas que poderia partir de épocas mais remotas – uma lição, tenha-se em conta, que é também a de Marx –, a política é a esfera onde se desenvolvem as relações de domínio, entendido tal domínio, em sua expressão mais intensa, como o poder de utilização, em última instância ou extrema ratio, da força física para o alcance de fins específicos. Em outros termos, o uso da força física, ainda que como alternativa derradeira, constitui o caráter específico do poder político. Nesse sentido, pode-se definir o Estado como o detentor do poder político e, em consequência, como meio e fim da ação política dos indivíduos e dos grupos em conflito entre si.

2. Aspecto fundamental no estudo da teoria do Estado é a hipótese hobbesiana que considera a necessidade do Estado como decorrência da convicção racional dos indivíduos de que o uso indiscriminado das forças privadas em livre conflito entre si faz surgir um estado autodestrutivo de guerra de todos contra todos, o que implica a renúncia de cada um ao uso privado da força, que se reverte em favor do soberano. Há, portanto, a substituição da pluralidade dos indivíduos singularmente considerados pela unidade do “poder comum”. No mesmo sentido é o conceito de Marx, com a diferença de que ele explica de forma muito mais realista o nascimento do Estado, não partindo de uma hipotética guerra de todos contra todos, que teve lugar em algum estado de natureza constituído racionalmente, mas de uma luta de classes histórica, derivada, a seu turno, da divisão do trabalho, com a consequência de que essa “violência concentrada e organizada da sociedade” – que é, segundo o entendimento de Marx, o Estado – é considerada não como o “poder comum”, e sim como o poder da classe dominante, ou seja, de uma parcela da sociedade sobre outra.

3. Hobbes dedicou vários parágrafos de suas obras à tarefa de identificar o estado de natureza com o estado de guerra – e, em particular, com o estado de guerra civil (o antiestado, portanto) –, não se podendo concluir, no entanto, que tal descrição tenha prefigurado a sociedade de mercado. Esta é, na interpretação histórica prevalente, o oposto ao estado de natureza hobbesiano. Isso quer dizer que, enquanto o estado de natureza descrito por Hobbes representa as condições sob as quais os homens seguiriam vivendo se não fossem seres racionais, a sociedade de mercado significa uma das expressões mais singulares da racionalidade espontânea.

4. Admitindo-se que existe Estado quando se desenvolve sobre um determinado território o processo de monopolização da força física, conclui-se que o Estado (ou a “forma de Estado”) deixa de existir quando, em situações de graves conflitos, esse monopólio se reduz ou, como ocorre nas relações internacionais, não chega a se caracterizar. Prova disso é que o Estado pode consentir na desmonopolização do poder econômico – é o que se deu no período áureo da formação do Estado burguês, concebido como mero instrumento de regulação dos conflitos econômicos surgidos na sociedade civil, ou seja, como um Estado neutro, não-intervencionista – ou na desmonopolização do poder ideológico –, situação observada nos Estados não confessionais, em que não existe uma religião ou, o que é o mesmo, uma ideologia oficial, reconhecendo-se os direitos de liberdade religiosa e opinião pública –, mas não pode consentir na desmonopolização do uso da força física sem deixar de ser Estado.

5. O imenso e exclusivo poder constituído pela detenção do monopólio da força não é obrigatoriamente exercido de igual maneira em todos os Estados. Assim é que, para Montesquieu, o Estado que exercita o poder coativo “sem leis nem freios” constitui o Estado despótico, isto é, o Estado em sua essência. Já nos grandes Estados ocidentais, concebem-se outras duas etapas: a do Estado de direito e a do Estado que, além de ser direito, é democrático.

5.1. O Estado de direito (entendido o direito kelsenianamente como o conjunto das normas que regulam o uso da força) se define como aquele em que o poder coativo não se exerce arbitrariamente pelo soberano, admitindo normas gerais e abstratas que estabelecem quem está autorizado a dispor da força, quando (em quais circunstâncias), como (por meio de quais procedimentos) e em que medida. À diferença do que se dá no Estado despótico, no Estado de direito é possível distinguir não apenas a força legítima da ilegítima (considerando-se legítima qualquer ação provinda do soberano, ou seja, daquele que possui o poder efetivo), mas também a força legal da ilegal. Nesse sentido, a luta pela instauração e pela apresentação aperfeiçoada de um Estado de direito se confunde com a luta pela ampliação dos limites do uso da força.

5.2. O conjunto das instituições que tornam possível a solução de conflitos sem o uso da força constitui, além do Estado de direito, o Estado democrático, onde vigora a regra básica segundo a qual em cada conflito o vencedor não é aquele que, com a força da persuasão (ou da propaganda habilidosa, ou mesmo da manipulação fraudulenta), consegue obter a maioria dos votos. Por conseguinte, ao passo que a instituição do Estado de direito influi sobre o uso da força no sentido de discipliná-lo, a instituição do Estado democrático atua sobre o uso da força reduzindo seu espaço de aplicação.

6. Há, na democracia, quatro paradoxos básicos que derivam de diferentes situações: i) do contraste entre democracia, considerada tradicionalmente como o regime adequado para pequenas comunidades, e as grandes organizações; ii) do contraste entre a eficácia do controle democrático e o aumento exagerado do aparato burocrático do Estado; iii) do contraste entre a incompetência do cidadão ante problemas cada vez mais complexos e a exigência de soluções técnicas acessíveis somente a especialistas; e iv) do contraste entre o pressuposto ético da democracia, representado pela autonomia do indivíduo, e a sociedade de massas, caracterizada pelo indivíduo heterodirigido.

6.1. A ingovernabilidade é, em linhas gerais, decorrência da desproporção entre demandas que provêm em número crescente na sociedade civil e a capacidade do sistema político de atendê-las. Como consequência dessa diferença entre demanda e resposta, duas soluções extremas são apontadas: a diminuição forçada das demandas, que constitui a via autoritária, ou o fortalecimento e a melhoria dos serviços estatais, que constitui a alternativa social-democrata. A esse respeito, considera Hobbes ser irrelevante o problema clássico do excesso de poder, que leva à distinção entre o bom soberano e o mau soberano, ao contrário do que sucede quando o problema reside na atuação do soberano que, por debilidade ou por outros motivos, não consegue exercer o poder que o povo, submetendo-se a ele, lhe atribuiu.

6.2. Por privatização do público se compreende a derrota da ideia do Estado como ponto de convergência e de solução dos conflitos sociais – em outros termos, da derrota da concepção sistemática do Estado. Se se identifica na lei a manifestação mais elevada da vontade coletiva e a prova cabal da existência de uma esfera pública superior à esfera privada, uma série de fenômenos correntes na sociedade pode ser vista como um distanciamento da visão contratualista, ou, o que significa o mesmo, da manifestação jurídica típica da esfera privada. Todavia, como expressão da vontade coletiva, o Estado contemporâneo apresenta contornos de uma “transação” entre interesses diversos. Essa “transação” é muitas vezes representada por acordos informais entre as várias partes componentes da sociedade civil. No final, o Estado fica reduzido ao seu papel de mediação e, quando muito, de garantia do cumprimento de acordos entre grandes organizações (sindicatos, empresas, partidos, etc.).

6.3. Quanto ao problema do poder invisível, são necessárias algumas considerações prévias. Para Kant, a publicidade é condição necessária à justiça de uma ação, de tal sorte que se considera como fórmula transcendental do direito público o seguinte princípio: “Todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não é suscetível são injustas”. No Estado democrático, a opinião pública deveria ter um peso decisivo na formação e no controle das decisões políticas, donde a conclusão de que a publicidade há ser mais intensa. Ao tema da visibilidade e da invisibilidade do poder se agregam outros dois: o da ideologia como ocultação e o da crescente capacidade de se conhecer o comportamento dos cidadãos (de “vê-los”, portanto) através da organização pública de centros de informação cada vez mais equipados e eficazes. E é justamente nesse ponto que reside um dos principais fatores da crise da democracia, eis que, à medida que aumenta a capacidade do Estado de controlar os cidadãos, deveria também aumentar a capacidade dos cidadãos de controlar o Estado. Esse crescimento paralelo, no entanto, está longe de se concretizar.

 

Segundo texto

 

Michel Miaille parte da constatação de que o enfoque jurídico do Estado vem se reduzindo, com bastante frequência, a uma reprodução do positivismo, circunstância que bloqueia as possibilidades de evolução das tentativas de explicar o porquê da existência do Estado. Miaille denuncia uma postura juridicista em que as definições se atêm aos mecanismos de funcionamento dos órgãos estatais, pondo de lado o exame das singularidades dos modos de exercício do monopólio da força nos diferentes tipos de sociedade. Reproduzem-se, a seguir, alguns dos principais aspectos abordados pelo professor da Universidade de Montpellier.

1. A apresentação do Estado permanece ainda muito estreitamente jurídica em geral, e em particular por parte dos juristas, influenciados que estão por uma postura monárquica e centralizadora herdada do século XVIII francês. Porém, o defeito das concepções jurídicas do Estado não é simplesmente o de reproduzir um positivismo bastante vulgar, mas o de barrar o caminho a outras pesquisas possíveis. Não seria criticável o fato de os juristas terem um entendimento sobre o que representa o Estado se essa visão pudesse realmente explicar o Estado.

2. O essencial do trabalho dos juristas diz respeito às modalidades de funcionamento do Estado: o sistema de representação, o equilíbrio dos poderes, a organização interna e as relações entre órgãos constitucionais, etc. Esses caracteres, porém, nada acrescentam sobre o modo de funcionamento do Estado, entendido como o exercício de uma lógica específica. É que diversas instituições, pelo seu próprio funcionamento, traduzem ou revelam um modo de dominação que os juristas deveriam elucidar para conferir-lhe sentido.

2.1. Uma das perspectivas que se oferecem a respeito do problema consiste no funcionamento hegemônico do Estado. Durante longo tempo, os juristas não viram que, na realidade, o poder do Estado extravasa amplamente os limites dos aparelhos ditos políticos. Há, de início, a aparelhagem administrativa, que, mesmo constituindo o corpo do Estado, é excluída do estudo dos constitucionalistas. Mas esses aparelhos têm um significado considerável na vida cotidiana. Que seria o Estado sem o exército, o serviço público da Justiça, os correios, mas também sem os municípios e outras divisões territoriais?

2.2. Depois, há o que se chama de aparelhos ideológicos do Estado, quer dizer, os aparelhos que são às vezes privados do ponto de vista jurídico, ou submetidos ao direito privado, mas que constituem correias de transmissão do poder do Estado. Como, efetivamente, compreender o Estado sem o funcionamento dos partidos, dos sindicatos, da imprensa, dos organismos culturais, das igrejas, etc.? É com base em tais precisões que se desenvolve a ideia de hegemonia, cuja localização, contudo, é impossível de se dar no universo social. Por outro lado, a própria noção de sociedade civil continua problemática, pois designa algo além do que é o Estado.

2.3. As formas de dominação em funcionamento no Estado podem ser objeto de uma pesquisa sistemática. O discurso dos juristas unifica abusadamente esses diversos modos na ideia de que o Estado tem o monopólio da violência, ou é a instituição das instituições – quer dizer, resumiria todas as outras formas de poderes. Significa considerar que existe apenas um poder. Já os sociólogos e os etnólogos localizam, nas diferentes sociedades, formas de dominação específicas. Duas podem ser assinaladas: aquela, de certo modo primitiva, que obriga o titular do poder a recriar incessantemente as condições de sua dominação por meio de ritos, gestos e dons, e aquela, socialmente mais econômica em relação ao custo de poder, que, abstrata e mecânica, é baseada em instituições que acumulam os efeitos do que já foi conseguido. Ocorre que, contrariamente ao que se pode imaginar, a segunda forma de poder social não é de uma racionalidade superior, o que desembocaria numa visão weberiana do Estado ocidental.

3. Para muitos juristas, a questão do fundamento do Estado foge da esfera estritamente jurídica, abrigando-se no campo da história e da sociologia. Com base nesse deslocamento, parte-se do direito positivo para se falar apenas das condições jurídicas da existência do Estado: território, população, organização dos poderes públicos, etc. Esse deslocamento, porém, não é o bastante para eliminar a questão que se examina.

4. Para explicar a origem do Estado, os marxistas se ativeram, durante largo tempo, a uma visão historicista bastante simples, herdada de Engels (“A origem da família, da propriedade privada e do Estado”). Todavia, os resultados obtidos por ele, baseados em pesquisas realizadas por L. H. Morgan, são parciais, significando um fragmento apenas do marxismo. Surge daí a seguinte indagação: o que faz com que, na sociedade capitalista, a dominação não apareça como ela é, ou seja como dominação privada de uma classe, mas como a do interesse público? É aí que reside o essencial do Estado: essa transformação de um interesse privado que vai aparecer como público, ao mesmo tempo que o escravo e o pequeno camponês livre ou servo veem no mestre e no senhor forças privadas de dominação.

5. Tem-se, finalmente, a noção de derivação, segundo a qual, na concepção do Estado, vislumbra-se uma forma necessária da sociedade capitalista, que é uma sociedade de “capitalistas individuais”, separados, sem organizar por si próprios a reprodução do capital como relação social unificada.

 


Referências

 

BOBBIO, Norberto. La crisis de la democracia y la lección de los clásicos. In: BOBBIO, Norberto, e VECA, Salvatore. La crisis de la democracia. Barcelona: Editorial Ariel S.A., 1984. p. 5-25.

MIAILLE, Michel. Uma introdução crítica ao direito. Lisboa: Moraes, 1979.