Artigo publicado no jornal da Unicamp em 20 de abril analisa a evolução das doenças provocadas pelo Covid-19 em todo o mundo e destaca a importância das ciências sociais e humanas para a compreensão da pandemia. Confira, abaixo, a íntegra do estudo, assinado por Peter Schulz, que se baseou em gráficos publicados na página da Universidade Johns Hopkins, dos EUA.

 

 


Covid-19: os dados em vez das opiniões

Peter Schulz

 

Os últimos dias têm sido assustadores. Aparentemente, crescem as manifestações contra o isolamento social, com reclamos de intervenções inconstitucionais de toda ordem. Posições contra o isolamento acontecem em outros países, mas, aqui, isso se transformou em paroxismo, sempre ancorado em opiniões desinformadas, deliberadamente ou não.

Os dados é que precisam se pronunciar. No começo da pandemia da Covid-19, ainda restrita à China, deparei com a página especial dedicada à Covid-19 da Universidade Johns Hopkins dos Estados Unidos da América. Desde princípios de fevereiro, é aba constantemente aberta no meu celular. De lá para cá, virou fonte dos principais veículos de imprensa e informação validada pelo mundo afora. E é muito simples. Basta olhar diariamente a fonte de dados e refletir sobre eles. Mas isso, em tempos acelerados e polarizados, parece ser muito trabalho: boa parte dos membros da sociedade se contenta em ler os excertos manipulados e compartilhá-los no frenesi do slogan “tá vendo?”. Mas os dados são dados e fatos são os fatos, valendo ainda a máxima do senador Daniel Patrick Moynihan (1927-2003): “Você tem direito a suas próprias opiniões, mas não tem direito a seus próprios fatos”. Quais são os fatos? Quais são os dados?

No caso do portal especial da Universidade Johns Hopkins, ilustrado na primeira figura, temos desde o número de total de casos da Covid-19 pelo mundo, por países, o mapa de distribuição, gráficos, rankings de mortes, número de testes e de recuperados. Os dados são muitos, nem sempre precisos, atualizados várias vezes ao dia. Checo a precisão da coleta desses dados mundo afora comparando o que é informado por aqui com o que aparece lá. É uma compilação difícil, os protocolos em cada país devem ser diferentes, bem como os números de testes e suas dinâmicas de aplicação. Existem atrasos entre as datas de informação de novos casos e as datas de infecção, devido ao tempo que os sempre insuficientes testes demoram para ser avaliados e informados. Mesmo assim, com mais de dois milhões de casos em todo mundo, algo podemos aprender, além do que anuncia a “Universidade do WhatsApp”.

 

 

As imagens a seguir (para ampliar, clique nos gráficos) mostram alguns dados que podem ser úteis: os novos casos diários diagnosticados no mundo e por país. Basta clicar em algum país na tabela à esquerda que o gráfico correspondente aparece no canto inferior direito. Com outro clique, é possível expandir o gráfico. Convido a todos a acompanhar a página da Universidade Johns Hopkins no lugar dos comentários nos grupos de WhatsApp. Escolhi alguns países sobre os quais acompanhamos notícias diárias e outros nem tanto. A estruturação da página exigiu algum artesanato: para ter acesso aos dados, é preciso inscrever-se e declarar que serão usados para fins de pesquisa. Não é o caso deste texto, que é apenas uma coluna. Assim, precisei recorrer ao “print screen” e outros ajustes, copiando e colando. Com isso, a resolução de imagens foi se perdendo, sendo parcialmente recuperada na sua edição. Os dados foram coletados em 19 de abril de 2020.

Primeiro a evolução dos novos casos diários somados de todos os países. Observa-se, à esquerda, que o caso chinês com o seu pico em fevereiro praticamente desaparece na escala do gráfico para o mundo todo, em que em alguns dias chegou-se à marca de 100 mil novos casos diários, que é maior do que o total na China. Esse crescimento pelo mundo começou a se acentuar quando na China e na Coreia do Sul já estavam em franco declínio. Talvez seja relevante prestar a atenção à evolução na Coreia do Sul: após a queda abrupta do pico de novos casos, seguiu-se um período revelando números aproximadamente constantes, que começaram a diminuir de forma significativa mais recentemente. No gráfico para o mundo, observamos oscilações semanais: nos fins de semana, as notificações de novos casos decrescem, não só no Brasil, mas em vários países.

 

 

No segundo conjunto de gráficos, temos três importantes casos europeus, que estão na liderança entre os países com mais infectados. Os dramas da Itália e da Espanha são amplamente noticiados no Brasil, mas a situação na Alemanha nem tanto. Apesar do grande número de casos, aparentemente o sistema de saúde alemão não entrou em colapso. Nos três países, as ações (ou falta de) no início da pandemia foram diferentes, com a negação e depois quebra da prática de distanciamento social na Itália. A recuperação desse país, ou seja, a diminuição do número de novos casos, também parece ser mais lenta do que na Espanha e na Alemanha. Nos três países observam-se claramente as oscilações, devidas aos fins de semana, na notificação de infectados. A tendência descendente é suficiente para relaxar o isolamento? Chamo a atenção à última semana na Espanha, com um novo pico de 6000 novos casos.

 

 

Os Estados Unidos são os líderes no número total de casos e de novos infectados diários, e a situação também é grave no Reino Unido, onde os números diários se aproximam do que foi o pico na Itália. Importante lembrar que os chefes de governo de ambos países negavam ou minimizavam a pandemia, que se acentuou nesses países bem depois do drama italiano: tempo e vidas preciosas perdidas. Na mesma figura, junta-se um dos primeiros países gravemente afetados, o Irã. Importante, no caso iraniano, é notar que, depois que o número de novos casos parou de crescer, como talvez seja o caso nos EUA e Reino Unido, uma nova onda surgiu rapidamente, que passou a diminuir, mas muito lentamente, e o número de casos novos diários ainda é maior do que há um mês. O exemplo mostra o perigo de se enxergar um aparente controle quando não se observa um aumento no número diário de infectados.

 

 

Quando, então, relaxar medidas de isolamento? Essa é a proposta da Áustria para este fim de abril. O gráfico para esse país apresenta um comportamento único, com a acentuada e relativamente rápida queda no número de novos casos. Será muito importante observar como evoluirá a curva depois de (se for de fato) diminuído o distanciamento social. No meio da figura, encaixo o Brasil, onde, apesar das medidas locais de isolamento, o número de casos novos diários não parou de crescer (salvo nas acentuadas oscilações devido aos fins de semana), ultrapassando a marca de 3000 notificações diárias. Não há indícios visíveis de que esses números vão parar de crescer. Ao lado, aparecem os dados para o Japão, que até há pouco tempo declarava que a pandemia por lá estava sob controle.

 

 

Na última figura, uma seleção de “novas bolas da vez” (outras virão, como a Índia e os países africanos), que declaravam no início que a situação estava sob controle ou que ostensivamente negavam a existência do problema (México). A Turquia passou a ser um dos países com o maior número de casos, e a Rússia avança rapidamente – o número de casos avança de forma exponencial, tendo superado o Brasil na primeira quinzena de abril, embora com um número de mortos significativamente menor (405).

 

 

Esse conjunto de gráficos evidencia a complexidade da pandemia com um conjunto de variáveis muito grande, diferentes em cada país: diferenças nas posições e nas ações das autoridades, nas realizações de testes, na adesão e no comportamento frente ao distanciamento social, nas condições para o isolamento, além de outros fatores. Uma coisa parece ser clara: entender a pandemia da Covid-19 necessita das ciências humanas e sociais baseadas nos dados. A outra evidência: o isolamento social é absolutamente necessário, e poucos países conseguiram controlar a crise. Por enquanto. Singapura, que chegou a ser citado como exemplo, hoje assiste a uma explosão de novos casos. Clique no site, os dados estão lá.

 


Peter Schulz foi professor do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW), da Unicamp, durante 20 anos. Atualmente, é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira.