Serra da Mantiqueira | foto: divulgação

 

Suponho que seja coisa da velhice e da decepção com o ser humano, que o correr da vida nos ensina, mas às vezes me dá uma vontade danada de botar o boné, agarrar uma mochila e sair por aí sem rumo. Sem rumo, não. Com rumo, sim. Um rumo que me leve o mais longe possível da “civilização”, onde se possa viver junto à natureza, entre as árvores, as flores, os animais e alguns poucos seres humanos de verdade. Ah, a “civilização”!… – essa coisa bárbara que nos cerca e que os doutos definem como sendo o “estado de desenvolvimento econômico, social e político a que chegam as sociedades, e que é considerado como ideal”. Pois sim! Tenho visto isso todas as noites no noticiário da TV.

Nesses momentos, lembro-me de Rubem Alves, o meu filósofo favorito. Rubem garantia – e, mais uma vez, estou de acordo com ele – que as plantas e os animais têm uma sabedoria que nós não temos. Ele próprio encontrou o seu refúgio de paz. Foi no alto da Serra da Mantiqueira, região que eu e minha Cleonice tanto amamos, entre “as montanhas que se sucedem, até desaparecerem no horizonte, azuladas, escondidas entre brumas”, onde existem “riachos de água transparente, que correm sobre pedras, em meio às samambaias, aos lírios do brejo, às flores vermelhas cujo nome não sei”, e de “gigantescas araucárias, de troncos enrugados, paraíso dos pica-paus de penacho vermelho e dos pintassilgos”.

Já teve dia em que eu gostaria de também ter um pedacinho de terra lá na Serra da Mantiqueira, nas Minas Gerais, em São Paulo ou no Rio. Talvez ali próximo de Passa Quatro ou nas Terras Altas, imediações do pico das Agulhas Negras. Ou um pouco mais à direita, na Serrinha do Alambari, entre Penedo (RJ) e Visconde de Mauá (MG). Nada contra a nossa Serra do Mar, igualmente bela e misteriosa. Ou o alto de São Luiz do Purunã. Ou nos arredores da minha Lapa, para os lados de Campo do Tenente. Mas aí seria próximo demais do mundo civilizado. E a velha Mantiqueira tem algo mais, além de borboletas, grilos, aranhas, joaninhas, formigas, besouros, carrapatos, marimbondos, onças e flores. Algo que penetra na gente, instala-se de mansinho e não nos abandona mais, como se fosse um universo inteiro, repleto de harmonia, sabedoria e solidariedade.

Não tenho mais idade para realizar esse sonho. Mas continuo achando que, ainda que não definitivamente, tem hora que necessário se faz escalar as montanhas, contemplar o mar, assistir aos entardeceres, ouvir o vento e as águas do rio, sentir a chuva batendo no rosto, ver a luz das estrelas e, sobretudo, aprender com a sabedoria dos pássaros – como já nos ensinou aquele que se chamou Jesus. Ou, se tudo isso não for possível, viver simplesmente em silêncio.

Diz-se que São Francisco de Assis pregava aos animais. Rubem Alves não acreditava. Ele achava que, ao contrário, era Francisco, o santo, que com os animais aprendia, “porque não se pode pregar a seres perfeitos”. E, por isso, ele era tão amado. “Nos seus gestos e palavras ele nos diz de um jeito de ser de plantas e bichos de que nos esquecemos e de que queremos nos lembrar, para sermos menos infelizes” – pregava Rubem.

Se São Francisco voltasse à vida, com certeza iria viver ao redor da Mantiqueira, talvez no Parque Nacional do Itatiaia. Porque São Francisco – como também contava o Rubem – via Deus nas coisas da natureza e amava tudo o que vivia e, segundo a lenda, as coisas que viviam o amavam também.

Com a chegada da velhice, é preciso voltar a ser criança, recuperar a inocência perdida, reaprender a sonhar e dar importância às coisas simples da vida, porque a vida está nas coisas simples. E os poderosos, graças a Deus, não sabem disso.

 

P.S. – Lembrou-me o querido amigo Vilmar Faria: se vivo estivesse, Rubem Alves teria feito (ou desfeito, como ele preferia), no dia 15 de setembro, 88 anos. Esse negócio de “se vivo estivesse”, é puro exercício de retórica. Para nós, seus admiradores, Rubem estará sempre vivo.

 

 

Célio Heitor Guimarães é jornalista e consultor jurídico aposentado.

Publicado no blog do Zé Beto em 15/9/21.