Uma carta endereçada a presidiárias retrata a situação dos cárceres brasileiros durante a pandemia de coronavírus. O texto, assinado por Marinês da Rosa, professora na Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat) e doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), faz parte de uma série de estudos sobre o tema divulgada pela Associação Brasileira de Ciência Política (ABPC)

 

Confira, abaixo, a íntegra do texto.

 

 


Carta a Maria do Mar: dialogando com mulheres no cárcere durante a pandemia[1]

Marinês da Rosa

 

Inverno de 2020.

São José/SC, 8 de julho de 2020.

Centésimo quinto dia da quarentena, Covid-19.

 

Prezada Maria do Mar[2],

 

Espero que estejas bem. Lembras-te de uma conversa que tivemos em 2018, quando exclamaste “pode parar tudo, menos o correio”? Escrevo-te neste dia de inverno lembrando que naquele momento havia paralisações em diferentes setores do país e temias que os Correios tivessem parado também. Convivendo com vocês, aprendi o quanto as cartas são importantes para quem está encarcerada, como me ensinou também Maria das Dores[3] que “as cartas são visitas que a gente recebe”.

E agora, Maria do Mar? Sei que estás vivendo novamente esse medo, pois por medida de segurança sanitária nenhuma carta está sendo entregue nas prisões brasileiras. Como te sentes? Sei que para ti as cartas são vitais para suportar a prisão. Tu me ensinaste que “as cartas dizem como a gente está, porque pode perceber sentimentos na forma das letras ou mesmo nas marcas de batom ou lágrimas…”. Do lado de cá, no contexto de medidas sanitárias diante da pandemia de Covid-19 direcionadas às prisões, acompanho notícias sobre a alternativa de contato com familiares por meio de correspondência eletrônica. Para quem nunca pôde utilizar meios virtuais para se comunicar com o mundo exterior, escrever e receber emails é uma grande novidade.

Além disso, está suspensa a entrega das sacolas, fundamentais para o dia a dia na prisão, pois suprem necessidades básicas de produtos de higiene pessoal, de alguns alimentos e, por vezes, de medicamentos. Na oportunidade de acompanhar os familiares em um dia de visitas em 2017, véspera do Natal, entendi que as sacolas, além de representarem a sobrevivência com condições mínimas de limpeza e alimentação no cárcere, significam a continuidade de laços afetivos com quem as envia ou as traz pessoalmente.

Paul Ricoeur (2006), ao assinalar que é nas experiências negativas de desprezo e de insatisfação que está fundado o desejo de reconhecimento, ajuda-nos a pensar no sentido que as cartas e as visitas têm para quem está na prisão. Desprezo, abandono, descaso são expressões utilizadas pelas “Marias no cárcere” para explicar a tristeza de não receber sacolas. Escutei Maria da Luz[4] contar: “minha família mora em outro lugar. Não recebo visita. Então, as outras acham que só tenho desprezo. Seria muito bom receber a família aqui pras outras saberem que a gente tem família como elas”.

“Ter família” e ser reconhecida por ela é fundamental para as mulheres encarceradas. Receber cartas é mostrar que se tem relações afetivas; e as sacolas que chegam são prova de que há visitas e, portanto, de que se é “reconhecida” pela família. Tais demonstrações produzem, por sua vez, o reconhecimento pelas companheiras de prisão, conforme nos ensina Maria Esperança: “mesmo que não venha ninguém, se a gente recebe a sacola as mulheres respeitam, porque sabem que a gente tem alguém”.

Se as cartas são uma prova mais subjetiva e individual desse “reconhecimento” de vínculos fora do cárcere, não receber sacolas implica ficar fora do “circuito de dádivas” dos produtos e objetos recebidos que são compartilhados com as outras na cela. Ter vínculos extramuros significa a manutenção de redes de reciprocidade no cárcere, que são, por sua vez, reconhecidas nesse espaço.

Vocês – mães, filhas, irmãs, companheiras que estão no cárcere – compõem, junto aos homens encarcerados, a imensa sombra que representa o encarceramento em massa no século XXI, como bem problematiza Didier Fassin (2019) na obra intitulada “A sombra do mundo: uma antropologia da condição carcerária”.

Como não pensar em vocês diante do contexto que assombra a todos: a ameaça do contágio? Como vocês estão do outro lado do muro? E seus familiares, que não podem mais visitá-las, como estão? Quais são as implicações, no cotidiano de vocês, da suspensão de muitas atividades educativas, religiosas e de trabalho? Como vocês estão vivendo sem a presença e circulação das(os) profissionais da área da saúde e de assistência social e jurídica que constituem o cotidiano prisional?

E o banho de sol, Maria do Mar? Ainda é possível tomá-lo neste momento de restrições? Do lado de cá do muro da prisão, poder sair ao ar livre é considerado um privilégio para as pessoas que estão em regime de isolamento social. As palavras de Maria de Luta[5] me fazem lembrar o quanto vocês valorizam esse momento: “quando estou aqui, o sol chega a doer na pele, porque desperta a pessoa que há em mim. Consigo olhar para o céu, ver sua grandeza e, por instantes, saio daqui”.

Do lado de cá, o “distanciamento social” como medida sanitária diante da pandemia de Covid-19 realça imensos muros imaginários. A quarentena expõe fronteiras, não como limites, mas no sentido daquilo que Michel de Certeau (1994) chamou de “espaços entre dois”, espaços que se sustentam como estruturas de blindagem às ameaças expressas no medo que o “outro” representa. As políticas prisionais ancoram-se na gestão desse medo; e, por isso, temos visto a naturalização da contaminação por Covid-19 e a morte de pessoas encarceradas. Estas, na sociedade em que vivemos, são vistas como “não merecendo viver”, conceito que Achile Mbembe (2018) denominou “necropolítica”. Assim como vocês, outros grupos têm sido alvo dessas políticas de morte no Brasil: populações indígenas, negros, favelados, moradores de rua, idosos e muitos outros considerados “dispensáveis” pelas políticas de Estado. Saibam, todavia, que vocês não foram abandonadas. Inúmeras redes de solidariedade e defesa dos Direitos Humanos estão mobilizadas e atuando neste período de pandemia.

Despeço-me, com saudade e apreensão, desejando que vocês fiquem bem, que sejam protegidas desse vírus que já matou milhares de pessoas no Brasil. Ao escrever esta carta, lembro-me dos ensinamentos do filósofo Michel Foucault (1992), para quem a carta implica presentificar a imagem do outro. Mantenho minha esperança de dias melhores com tua imagem surfando[6] no tapetinho de yoga em um de nossos encontros na prisão.

 

Marinês da Rosa é professora na Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat) e doutoranda no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC.

 

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Notas

 

[1] Esta carta faz parte de minha tese de doutorado sobre mulheres no cárcere, em que dialogo com minhas interlocutoras através de cartas.

[2] Maria do Mar tem 37 anos, é branca, mãe, surfista, catarinense. Tem formação técnica e trabalhava na área da saúde. Cumpre pena em regime fechado em um presídio de Santa Catarina.

[3] Maria das Dores tem 37 anos, negra, mãe, oriunda da região rural do nordeste do país. Apresenta dificuldades para ler e escrever. Trabalhava na roça. Cumpre pena em regime fechado em um presídio de Santa Catarina.

[4] Maria da Luz tem 36 anos, é negra e mãe. Nascida na região sul do país, tem segundo grau completo e trabalhou como balconista. É reincidente em delitos e atualmente cumpre pena em regime fechado em um presídio da capital catarinense.

[5] Maria de Luta tem 45 anos, é branca, viúva. Nascida na região sul do país, é pós-graduada e trabalhou como professora. Atualmente está em liberdade.

[6] Ao final, da prática de Hatha Yoga, especificamente, a yoga nidra ao som do mar. Tu ficaste em pé, sobre o tapetinho. Com os pés firmes disseste: eu surfei e continuo surfando. Olha meu corpo, leve, solto…Estavas sobre o tapetinho como se em uma prancha.

 

Referências bibliográficas

 

  • CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
  • FASSIN, Didier. A sombra do mundo: uma antropologia da condição carcerária. São Paulo: Unifesp, 2019.
  • FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992.
  • MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
  • RICOEUR, Paul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.