Complexo do Alemão: chacina na Favela Nova Brasília, em 1994, retrata a violação de direitos humanos em comunidades do Rio de Janeiro (foto: Agência Brasil)

 

Em novembro de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) publicou uma resolução com a supervisão do cumprimento de sentença do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil [1]. O caso, de 2017, tem como pano de fundo violações de direitos humanos perpetradas por agentes policiais na Favela Nova Brasília, pertencente ao complexo de favelas do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro. Desde então, muitas discussões foram levantadas acerca do caso e das questões políticas, sociais e estruturais que fazem dessas violências uma possibilidade.

A presente reflexão tem por objetivo discutir os principais pontos do caso no Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) e no direito doméstico brasileiro, bem como tencionar alguns eixos de análises, quais sejam: a violência policial, o racismo estrutural inerente ao sistema de justiça criminal, as diretrizes internacionais referentes à abordagem policial e, por fim, o cumprimento da sentença da corte.

 

Favela Nova Brasília vs. Brasil

O caso envolveu invasões policiais em 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de 1995, alegando razões de segurança pública. Essa ação policial resultou em 26 mortes perpetradas por policiais, casos de tortura, além de três relatos de mulheres que sofreram violências sexuais.

A resposta estatal às referidas incursões foi a de que os policiais estavam reagindo à violência externa, tendo em vista a “resistência à prisão”. A Corte pontua que “as investigações pelas mortes ocorridas em ambas as incursões começaram com a presunção de que os agentes de polícia agiam no cumprimento da lei, e que as mortes haviam sido resultado dos confrontos que teriam ocorrido durante as incursões” [2]. Entretanto, as investigações não concluíram por esse entendimento, tendo sido arquivadas no ano de 2009 sem qualquer sanção.

Os agentes policiais que participaram das incursões e das violências não foram responsabilizados pelas mortes, não sendo nem investigados pelas práticas relatadas de violências sexuais, culminando na inexistência da devida reparação às vítimas.

A condenação do Estado brasileiro teve como principal escopo a vagarosidade e a negligência nas investigações para responsabilizar judicialmente os autores dos crimes por suas condutas, ora pertencentes ao próprio aparato estatal, o que ensejou em suspeitas da própria imparcialidade das investigações, visto que os responsáveis pelas investigações pertenciam ao mesmo órgão responsável pelas incursões na favela Nova Brasília.

 

O racismo estrutural e o sistema de justiça criminal

A sentença abordou a situação da violência estatal no Brasil, enfatizando que os principais alvos de ações policiais violentas e fatais são homens de baixa renda, negros e desarmados. A CIDH e a Corte IDH, no caso Favela Nova Brasília, analisaram a relação entre racismo estrutural e violência policial no Brasil, demonstrando uma preocupação recorrente e reiterada no Sistema Interamericano de Direitos Humanos com relação ao contexto brasileiro de discriminação estrutural. A condenação a essas formas de discriminação estruturais encontradas na violência policial traz uma ampla área de discussão entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito brasileiro.

De acordo com Felipe Freitas, os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2018 o Brasil manteve a média de 17 pessoas mortas por dia em intervenções policiais, de modo que 11 de cada 100 mortes violentas intencionais ocorridas no país foram provocadas pela Polícia, sendo que destas mais de 70% das vítimas eram negras, jovens e do sexo masculino [3].

A questão da segurança pública e da violência policial relaciona-se diretamente aos seguintes questionamentos propostos pelo autor: Quando a polícia brasileira atira? Como ocorrem esses disparos? Quem regularmente são os sujeitos alvos desses disparos? [4]. Estes questionamentos, por sua vez, fazem-se cruciais para a compreensão da operacionalização do sistema de justiça criminal no Brasil, visto que as relações de poder foram e são forjadas nos termos da raça e do racismo.

Em seu relatório de 2021 sobre a situação dos direitos humanos no Brasil [5], a CIDH reiterou sua preocupação com as graves ocorrências de violência policial no Brasil, especialmente contra a população negra, haja vista a ausência de avanço político dessas pautas.

 

A Resolução sobre a Supervisão de Cumprimento de Sentença (2021)

Na Resolução sobre a Supervisão de Cumprimento de Sentença de 25 de novembro de 2021, a Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro cumpriu totalmente duas medidas de reparação: a publicação da Sentença e o resumo; e o reembolso das somas a título de custas e gastos. Por outro lado, o Estado cumpriu parcialmente as medidas de reparação a título de danos imateriais, tendo em vista que reparou 61 vítimas, estando pendente o pagamento a 16 vítimas. Entretanto, duas medidas de reparação não foram cumpridas pelo Brasil: a instituição de investigações a partir de um órgão independente e o pagamento da indenização por danos imateriais às 16 vítimas ainda não reparadas.

Assim como na Sentença, a Corte IDH analisou novamente, na Supervisão de Cumprimento de Sentença, a problemática envolvendo a persistência da não independência dos órgãos de investigação das graves violações de direitos humanos, perpetrados por agentes de Estado, ocorridas na favela Nova Brasília.

Com relação a esse tema e nos termos da condenação da Corte IDH, o Estado deve estabelecer os mecanismos normativos necessários para que, na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, em que prima facie policiais apareçam como possíveis acusados, desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente [6].

A Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro estabeleça, como medida de reparação, os mecanismos normativos necessários para que as investigações sobre o Caso Favela Nova Brasília sejam realizadas por um órgão autônomo.

A Corte considera que o elemento essencial de uma investigação penal sobre uma morte decorrente de intervenção policial é a garantia de que o órgão investigador seja independente dos funcionários envolvidos no incidente. Essa independência implica a ausência de relação institucional ou hierárquica, assim como sua independência na prática [7].

Nesse cenário, a Corte IDH aponta o Ministério Público como o órgão não só de fiscalização, mas de investigação diante das presentes hipóteses, resguardando a imparcialidade devida à fase pré-processual.

 

Considerações finais

A Corte IDH apontou que o Estado brasileiro não conduziu as investigações de maneira eficiente tendo em vista a responsabilização daqueles que consumaram tais delitos na favela Nova Brasília.

O caso representa um importante precedente, principalmente após sua Supervisão de Cumprimento de Sentença, para se pensar em formas efetivas de promoção do diálogo entre o SIDH e sistemas jurídicos domésticos no que se refere à garantia dos direitos humanos e ao cumprimento de medidas de reparação no âmbito interamericano.

 

 

Gabriel Cardoso Cândido é advogado criminalista, formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e discente do programa de pós-graduação em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

Hannah De Gregorio Leão é advogada, mestranda em Análise e Gestão de Políticas Internacionais: Resolução de Conflitos e Cooperação para o Desenvolvimento (Mapo) do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

 


Notas

 

[1] CORTE IDH. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 25 novembro de 2021 – Supervisão de cumprimento de sentença: Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2021. Disponível: <https://summa.cejil.org/api/files/16421679641603e544mwa19.pdf> Acesso em 24 dez 2022.
[2] CORTE IDH. Sentença de 16 de fevereiro de 2017 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas) – Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Corte Interamericana de Direitos Humanos, Disponível: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf>. Acesso em 24 dez 2022.
[3] FREITAS, Felipe da Silva. O que a gente quer que a polícia faça? — Ódio e racismo como mandato policial no Brasil. In. FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula (Org.). Rebelião. Brasília: Brado Negro, Nirema, 2020, p.88.
[4] FREITAS, Felipe da Silva. O que a gente quer que a polícia faça? — Ódio e racismo como mandato policial no Brasil. In. FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula (Org.). Rebelião. Brasília: Brado Negro, Nirema, 2020, p.87.
[5] CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil: aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de 2021. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 2021. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf>. Acesso em 24 dez 2022.
[6] CORTE IDH. Sentença de 16 de fevereiro de 2017 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas): Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Corte Interamericana de Direitos Humanos, Disponível: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf>. Acesso em 24 dez 2022.
[7] CORTE IDH. Sentença de 16 de fevereiro de 2017 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas) – Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Corte Interamericana de Direitos Humanos, Disponível: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf>. Acesso em 24 dez 2022.